domingo, 15 de novembro de 2015

Da tradição à revolução: que fazer com o Distrito? Parte 2.

Grândola, 2015. Fotografia de Ermelinda Toscano.

«A partir de 1991 os tempos têm sido, de facto, muito difíceis. Todos o reconhecem (deputados, autarcas e governantes). Por vezes até se indignam e prometem agir. Mas, incompreensivelmente, ninguém parece disposto a assumir uma atitude. Ou, quando alguém sugere uma solução ela é tão desenquadrada da realidade que o desejo dos seus proponentes parece ser que aconteça o contrário daquilo que afirmam, ou seja, os projectos aparecem como “descarga de consciência” apenas para “mostrar trabalho”, carecendo de uma base de sustentação efectiva que lhes garanta sérias hipóteses de virem a ser aprovados e implementados com êxito.

Um dos exemplos mais conhecidos foi o projecto de lei que o Grupo Parlamentar do Partido Social Democrata(2) elaborou, em plena campanha do referendo da regionalização para contrapor às regiões administrativas do Partido Socialista, e que apelidou de "Reforço da Intervenção Autárquica do Dis­trito", e cujos argumentos justificativos a seguir se enunciam:

“O Distrito é uma realidade geográfica, administrativa e sócio-política bem conhecida dos portugueses, cuja existência é incontroversa, cujos limites não sofrem contestação e cuja capital não é questionada.
Todavia, o regime jurídico aplicável, com mais de 7 anos de vigência, não tem facultado os instrumentos que melhor beneficiem, hoje, as respectivas populações, sendo necessário promover os ajustamentos que a evolução das circunstâncias aconselha.
Em primeiro lugar, no que diz respeito às Assembleias Distritais, em que têm assento e participam os eleitos locais do Distrito, as quais têm sido fórum privilegiado de debate autárquico sobre as questões que mais directa e imediatamente têm que ver com os interesses específicos e comuns das populações residentes no distrito, e cujas compe­tências ora se reforçam.
Em segundo lugar, no que concerne ao Conselho Consultivo, o qual, hoje, apenas com a função de assistir aleatoriamente o Governador Civil, tem tido um papel que fica aquém daquele que pode e deve desempenhar.
De facto, tornando-se cada vez mais necessária a compatibilização, a nível distrital, não só das próprias actuações dos diversos sectores desconcentrados da Administração entre si, como delas com as autarquias locais do distrito, parece óbvia a necessidade de autonomizar, operacionalizar e dignificar o Conselho Consultivo, atribuindo-lhe as funções inerentes a um trabalho conjunto, coordenado e sistematizado dos diversos sectores da Administração Central e Local da área de cada distrito, para racionalizar circuitos de decisão e compatibilizar áreas de intervenção, faci­litando assim o quotidiano das populações.”

Considerando que havia sido este mesmo grupo parlamentar quem, anos antes, concebera e aprovara o Decreto-Lei n.º 5/91 (o principal responsável pela letargia em que as Assembleias Distritais acabaram por ficar, em virtude de os seus orçamentos passarem a depender, apenas, dos contributos dos municípios), pretender, agora, dotar as moribundas Assembleias Distritais de mais competências, nomeadamente em áreas para as quais, à partida, não tinham qualquer capacidade de intervenção, parecia coisa estranha. Senão vejamos.

Para que um projecto daquela natureza fosse viável, não bastava reconhecer a incontestável aceitação popular da delimitação geográfica daquela unidade de circunscrição territorial (opinião que não reunia, assim, tantos consensos como se pretendia fazer crer) nem tão pouco a existência de um diploma legal seria suficiente para concretizar a institucionalização das Assembleias Distritais como entidades potencialmente capazes de compatibilizar “as actuações dos diversos sectores desconcentrados da Administração entre si, como delas com as autarquias do distrito”.

É que, qualquer solução necessitava de colher o aval dos autarcas, os quais não haviam sido auscultados, e deveria apresentar mecanismos de financiamento suficientemente sólidos para, desse modo, garantir o seu eficaz desempenho como instrumentos seguros de racionalização dos recursos disponíveis, em proveito das populações, o que também não acontecia.

Atendendo a que a viabilidade prática do projecto de lei identificado em epígrafe dependia, em primeira instância, da vontade dos membros das Assembleias Distritais em assegurar a sua continuidade, a deliberação de conformidade dos respectivos órgãos colegiais acerca do conteúdo daquela proposta (legitimando a sua assunção a nível legal e prevenindo eventuais incorrecções interpretativas) deveria ter sido condição básica para a sua discussão na Assembleia da República – é que, por mais bem elaborado do ponto de vista técnico, um enquadramento jurídico só funciona como pilar da estabilidade se tiver sido discutido e aceite, previamente, pelos principais interessados.

A consecução prática das medidas preconizadas no documento ora em análise careceu de um debate prévio, profundo e alargado, que esclarecesse as ambiguidades latentes, reformulasse objectivos e enunciasse princípios exequíveis, sob pena de se vir a tornar inviável do ponto de vista orgânico e voltar a padecer de incumprimento crónico das regras normativas a elas subjacentes. Como o Grupo Parlamentar do PSD não se mostrou receptivo a tal, a nosso ver intencionalmente (porque consideramos que nunca foi propósito daquele partido fazer aprovar esta proposta), o projecto – que fazia parte de um pacote alargado sobre os municípios – acabou por ter uma discussão inócua no plenário da Assembleia da República, conforme podemos deduzir pelo discurso de João Amaral(3) a seguir transcrito:

«O que o PSD quer é combater as regiões, as verdadeiras, substituindo-as por falsas regiões, sejam elas quais forem. Para o PSD neste pacote, há as regiões - CCR, que já eram as regiões que mais gostava; há as regiões - áreas metropolitanas, curiosamente em número de oito, todas no litoral, nem uma no Alentejo, em Trás-os-Montes ou na Beira Interior; há as regiões - associações de municípios, onde o PSD admite que sejam expropriadas aos municípios competências que hoje detêm, já que prevê que sejam competências próprias das associações, não exclusivamente competências que hoje sejam da administração central, mas competências que hoje são do município. Em vez da transferência da administração central para as associações, o que o PSD pretende é a transferência do município para as associações.
Para cúmulo, o PSD ainda recorre a outra falsa forma de região, que é o velho e caduco distrito e a sua assembleia distrital. Uma espécie em vias de irremediável extinção, caducada pela constituição e por toda a experiência histórica, até ao distrito o PSD recorre contra as verdadeiras regiões!
Na panóplia das falsas regiões possíveis, deve dizer-se (sem ofensa) que só faltam as colónias!
Sabem qual é o problema de fundo que leva a este debate, que poderia chamar surrealista, não se desse o caso de os surrealistas ficarem legitimamente ofendidos?
O problema de fundo está posto mesmo dentro do PSD e divide-vos, senhores deputados do PSD. Ouvi-o há poucos dias, na sexta feira passada, da boca do Presidente da Câmara da Maia, Professor Vieira da Carvalho.
A frase é lapidar: "quem diz que vai propor o reforço dos Municípios como alternativa à criação das regiões, não sabe o que são as regiões e não conhece os municípios portugueses".
Falar do reforço do municipalismo contrapondo-o à criação das regiões é, como está dito, ou ignorância ou má fé.
As competências que as regiões poderão exercer são tiradas à administração Central e são competências que por definição não poderão ser exercidas pelo Poder Local, pela sua dimensão escassa. São competências que exigem um território mais vasto. O reforço dos municípios não é alternativa a nada. Deve ser sempre feito, já devia estar feito mesmo antes de haver regiões, porque é feito com competências que os municípios podem assumir e que por isso não devem em nenhum caso ir para as regiões.
É por isso que esta cangalhada de projectos que o PSD aqui tem, e que pôs a discussão da Assembleia à pressa, mesmo sem o parecer da Associação Nacional de Municípios e da ANAFRE, está inquinada à partida. Porque o Poder Local não é alternativa às regiões. É, com as regiões, alternativa ao centralismo e à concentração.
Fazendo dos municípios a alternativa às regiões que elas não podem ser, o PSD defende o centralismo. Diz sim ao centralismo.
Dizer alguma coisa sobre o conteúdo dos projectos neste contexto? Para quê? Para mostrar que mais uma vez o PSD procura atirar competências para os Municípios sem garantir os adequados meios financeiros? Que o PSD apoia as áreas ricas e do litoral com as suas oito regiões metropolitanas e despreza o resto do País? Para dizer que ataca direitos dos trabalhadores? Que quer legitimar o poder das CCRs com a chancela municipal? Que admite restringir as competências próprias municipais?
Há de facto uma discussão a fazer, sobre o reforço das competências e meios financeiros dos municípios. Uma discussão com os municípios, e não pondo-os de lado.”

Se as Assembleias Distritais já não tinham possibilidades de satisfazer todas as competências expressas no artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 5/91, querer que elas assumissem seis novas atribuições era mera utopia, a não ser que se pretendesse dotá-las de estruturas aptas a suportar, em termos orçamentais e funcionais, o novo acréscimo de tarefas – o que se afigurava improvável de vir a acontecer, pelos custos económicos daí inerentes:
a) Promover a elaboração de cartas escolares distritais;
b) Apoiar e incentivar a constituição de associações distritais de defesa do consumidor e de protecção de interesses difusos;
c) Promover, em colaboração com outras instituições vocacionadas para o efeito, a criação de centros de arbitragem de conflitos sobre consumo;
d) Apoiar, em colaboração com o Ministério e da Justiça e a Ordem dos Advogados, a criação e funcionamento de gabinetes de consulta jurídica que, graciosamente, aconselhem cidadãos carenciados residentes na circunscrição distrital;
e) Colaborar com os serviços municipais de protecção civil no levantamento das carências em meios técnicos, financeiros e humanos, e promover a entreajuda em situações de catástrofe e calamidade;
f) Aprovar e acompanhar o programa dos subsídios a atribuir pelo governador civil.

Não obstante a legislação permitir que as Assembleias Distritais possam delegar competências na Mesa para esta exercer funções como “comissão executiva permanente”, a ausência de um verdadeiro órgão executivo tem dificultado a assunção de determinadas responsabilidades no devido tempo útil porque a lei prevê que o órgão deliberativo das Assembleias Distritais reúna, ordinariamente, apenas duas vezes por ano. Porém, a razão básica da ineficácia funcional prende-se com a dificuldade em conseguir quorum, facto que leva, muitas vezes, ao sistemático adiamento de assuntos primordiais.

Por esse motivo, o Conselho Directivo previsto era uma inovação interessante e positiva. Contudo, a sua existência apenas se justificaria numa entidade plenamente operacional, com um aparelho estrutural de média dimensão (Serviços e quadro de pessoal). Caso contrário, a pirâmide hierárquica encontrar-se-ia invertida, o que não deixava de ser caricato. Além do mais só teria cabimento desde que não fosse aumentar a burocracia procedimental, o que não parecia ser a ideia proposta.


(2) Projecto de Lei n.º 560/VII, da iniciativa do deputado Marques Mendes, e outros, do PSD, em 1 de Setembro de 1998.
(3) Plenário da Assembleia da República, 21 de Outubro de 1998.»


CONTINUA





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