Grândola, 2015. Fotografia de Ermelinda Toscano.
«A partir de
1991 os tempos têm sido, de facto, muito difíceis. Todos o reconhecem
(deputados, autarcas e governantes). Por vezes até se indignam e prometem agir.
Mas, incompreensivelmente, ninguém parece disposto a assumir uma atitude. Ou,
quando alguém sugere uma solução ela é tão desenquadrada da realidade que o
desejo dos seus proponentes parece ser que aconteça o contrário daquilo que
afirmam, ou seja, os projectos aparecem como “descarga de consciência” apenas
para “mostrar trabalho”, carecendo de uma base de sustentação efectiva que lhes
garanta sérias hipóteses de virem a ser aprovados e implementados com êxito.
Um dos
exemplos mais conhecidos foi o projecto de lei que o Grupo Parlamentar do
Partido Social Democrata(2) elaborou, em plena campanha do referendo
da regionalização para contrapor às regiões administrativas do Partido
Socialista, e que apelidou de "Reforço da Intervenção Autárquica do Distrito",
e cujos argumentos justificativos a seguir se enunciam:
“O Distrito
é uma realidade geográfica, administrativa e sócio-política bem conhecida dos
portugueses, cuja existência é incontroversa, cujos limites não sofrem
contestação e cuja capital não é questionada.
Todavia, o
regime jurídico aplicável, com mais de 7 anos de vigência, não tem facultado os
instrumentos que melhor beneficiem, hoje, as respectivas populações, sendo
necessário promover os ajustamentos que a evolução das circunstâncias
aconselha.
Em primeiro
lugar, no que diz respeito às Assembleias Distritais, em que têm assento e
participam os eleitos locais do Distrito, as quais têm sido fórum privilegiado
de debate autárquico sobre as questões que mais directa e imediatamente têm que
ver com os interesses específicos e comuns das populações residentes no
distrito, e cujas competências ora se reforçam.
Em segundo
lugar, no que concerne ao Conselho Consultivo, o qual, hoje, apenas com a
função de assistir aleatoriamente o Governador Civil, tem tido um papel que
fica aquém daquele que pode e deve desempenhar.
De facto, tornando-se cada vez mais
necessária a compatibilização, a nível distrital, não só das próprias actuações
dos diversos sectores desconcentrados da Administração entre si, como delas com
as autarquias locais do distrito, parece óbvia a necessidade de autonomizar,
operacionalizar e dignificar o Conselho Consultivo, atribuindo-lhe as funções
inerentes a um trabalho conjunto, coordenado e sistematizado dos diversos
sectores da Administração Central e Local da área de cada distrito, para
racionalizar circuitos de decisão e compatibilizar áreas de intervenção, facilitando
assim o quotidiano das populações.”
Considerando
que havia sido este mesmo grupo parlamentar quem, anos antes, concebera e
aprovara o Decreto-Lei n.º 5/91 (o principal responsável pela letargia em que
as Assembleias Distritais acabaram por ficar, em virtude de os seus orçamentos
passarem a depender, apenas, dos contributos dos municípios), pretender, agora,
dotar as moribundas Assembleias Distritais de mais competências, nomeadamente
em áreas para as quais, à partida, não tinham qualquer capacidade de
intervenção, parecia coisa estranha. Senão vejamos.
Para que um projecto daquela natureza fosse viável,
não bastava reconhecer a incontestável aceitação popular da delimitação
geográfica daquela unidade de circunscrição territorial (opinião que não
reunia, assim, tantos consensos como se pretendia fazer crer) nem tão pouco a
existência de um diploma legal seria suficiente para concretizar a
institucionalização das Assembleias Distritais como entidades potencialmente
capazes de compatibilizar “as actuações dos diversos sectores desconcentrados
da Administração entre si, como delas com as autarquias do distrito”.
É que, qualquer solução necessitava de colher o aval
dos autarcas, os quais não haviam sido auscultados, e deveria apresentar
mecanismos de financiamento suficientemente sólidos para, desse modo, garantir
o seu eficaz desempenho como instrumentos seguros de racionalização dos
recursos disponíveis, em proveito das populações, o que também não acontecia.
Atendendo a que a viabilidade prática do projecto de
lei identificado em epígrafe dependia, em primeira instância, da vontade dos
membros das Assembleias Distritais em assegurar a sua continuidade, a
deliberação de conformidade dos respectivos órgãos colegiais acerca do conteúdo
daquela proposta (legitimando a sua assunção a nível legal e prevenindo eventuais
incorrecções interpretativas) deveria ter sido condição básica para a sua
discussão na Assembleia da República – é que, por mais bem elaborado do ponto
de vista técnico, um enquadramento jurídico só funciona como pilar da
estabilidade se tiver sido discutido e aceite, previamente, pelos principais
interessados.
A consecução prática das medidas preconizadas no
documento ora em análise careceu de um debate prévio, profundo e alargado, que
esclarecesse as ambiguidades latentes, reformulasse objectivos e enunciasse
princípios exequíveis, sob pena de se vir a tornar inviável do ponto de vista
orgânico e voltar a padecer de incumprimento crónico das regras normativas a
elas subjacentes. Como o Grupo Parlamentar do PSD não se mostrou receptivo a
tal, a nosso ver intencionalmente (porque consideramos que nunca foi propósito
daquele partido fazer aprovar esta proposta), o projecto – que fazia parte de
um pacote alargado sobre os municípios – acabou por ter uma discussão inócua no
plenário da Assembleia da República, conforme podemos deduzir pelo discurso de
João Amaral(3) a seguir transcrito:
«O que o PSD quer é combater as
regiões, as verdadeiras, substituindo-as por falsas regiões, sejam elas quais
forem. Para o PSD neste pacote, há as regiões - CCR, que já eram as
regiões que mais gostava; há as regiões - áreas metropolitanas,
curiosamente em número de oito, todas no litoral, nem uma no Alentejo,
em Trás-os-Montes ou na Beira Interior; há as regiões - associações de
municípios, onde o PSD admite que sejam expropriadas aos municípios
competências que hoje detêm, já que prevê que sejam competências próprias
das associações, não exclusivamente competências que hoje sejam da
administração central, mas competências que hoje são do município. Em vez da
transferência da administração central para as associações, o que o PSD
pretende é a transferência do município para as associações.
Para cúmulo, o PSD ainda recorre a
outra falsa forma de região, que é o velho e caduco distrito e a sua
assembleia distrital. Uma espécie em vias de irremediável extinção, caducada
pela constituição e por toda a experiência histórica, até ao distrito o PSD
recorre contra as verdadeiras regiões!
Na panóplia das falsas regiões
possíveis, deve dizer-se (sem ofensa) que só faltam as colónias!
Sabem qual é o problema de fundo que
leva a este debate, que poderia chamar surrealista, não se desse o caso de os
surrealistas ficarem legitimamente ofendidos?
O problema de fundo está posto mesmo
dentro do PSD e divide-vos, senhores deputados do PSD. Ouvi-o há poucos dias,
na sexta feira passada, da boca do Presidente da Câmara da Maia, Professor
Vieira da Carvalho.
A frase é lapidar: "quem diz
que vai propor o reforço dos Municípios como alternativa à criação das regiões,
não sabe o que são as regiões e não conhece os municípios portugueses".
Falar do reforço do municipalismo
contrapondo-o à criação das regiões é, como está dito, ou ignorância ou má fé.
As competências que as regiões
poderão exercer são tiradas à administração Central e são competências que por
definição não poderão ser exercidas pelo Poder Local, pela sua dimensão
escassa. São competências que exigem um território mais vasto. O reforço dos
municípios não é alternativa a nada. Deve ser sempre feito, já devia estar
feito mesmo antes de haver regiões, porque é feito com competências que os
municípios podem assumir e que por isso não devem em nenhum caso ir para as
regiões.
É por isso
que esta cangalhada de projectos que o PSD aqui tem, e que pôs a discussão da
Assembleia à pressa, mesmo sem o parecer da Associação Nacional de Municípios e
da ANAFRE, está inquinada à partida. Porque o Poder Local não é alternativa às
regiões. É, com as regiões, alternativa ao centralismo e à concentração.
Fazendo dos
municípios a alternativa às regiões que elas não podem ser, o PSD defende o
centralismo. Diz sim ao centralismo.
Dizer alguma
coisa sobre o conteúdo dos projectos neste contexto? Para quê? Para mostrar que
mais uma vez o PSD procura atirar competências para os Municípios sem garantir
os adequados meios financeiros? Que o PSD apoia as áreas ricas e do litoral com
as suas oito regiões metropolitanas e despreza o resto do País? Para dizer que
ataca direitos dos trabalhadores? Que quer legitimar o poder das CCRs com a
chancela municipal? Que admite restringir as competências próprias municipais?
Há de facto
uma discussão a fazer, sobre o reforço das competências e meios financeiros dos
municípios. Uma discussão com os municípios, e não pondo-os de lado.”
Se as Assembleias Distritais já não tinham
possibilidades de satisfazer todas as competências expressas no artigo 3.º do
Decreto-Lei n.º 5/91, querer que elas assumissem seis novas atribuições era mera
utopia, a não ser que se pretendesse dotá-las de estruturas aptas a suportar,
em termos orçamentais e funcionais, o novo acréscimo de tarefas – o que se
afigurava improvável de vir a acontecer, pelos custos económicos daí inerentes:
a) Promover a elaboração de cartas escolares
distritais;
b) Apoiar e incentivar a constituição de associações
distritais de defesa do consumidor e de protecção de interesses difusos;
c) Promover, em colaboração com outras instituições
vocacionadas para o efeito, a criação de centros de arbitragem de conflitos
sobre consumo;
d) Apoiar, em colaboração com o Ministério e da
Justiça e a Ordem dos Advogados, a criação e funcionamento de gabinetes de
consulta jurídica que, graciosamente, aconselhem cidadãos carenciados
residentes na circunscrição distrital;
e) Colaborar com os serviços municipais de protecção
civil no levantamento das carências em meios técnicos, financeiros e humanos, e
promover a entreajuda em situações de catástrofe e calamidade;
f) Aprovar e acompanhar o programa dos subsídios a
atribuir pelo governador civil.
Não obstante a legislação permitir que as Assembleias
Distritais possam delegar competências na Mesa para esta exercer funções como
“comissão executiva permanente”, a ausência de um verdadeiro órgão executivo
tem dificultado a assunção de determinadas responsabilidades no devido tempo
útil porque a lei prevê que o órgão deliberativo das Assembleias Distritais reúna,
ordinariamente, apenas duas vezes por ano. Porém, a razão básica da ineficácia
funcional prende-se com a dificuldade em conseguir quorum, facto que
leva, muitas vezes, ao sistemático adiamento de assuntos primordiais.
Por esse motivo, o Conselho Directivo previsto era uma
inovação interessante e positiva. Contudo, a sua existência apenas se
justificaria numa entidade plenamente operacional, com um aparelho estrutural
de média dimensão (Serviços e quadro de pessoal). Caso contrário, a pirâmide
hierárquica encontrar-se-ia invertida, o que não deixava de ser caricato. Além
do mais só teria cabimento desde que não fosse aumentar a burocracia
procedimental, o que não parecia ser a ideia proposta.
(2) Projecto de Lei n.º
560/VII, da iniciativa do deputado Marques Mendes, e outros, do PSD, em 1 de
Setembro de 1998.
(3) Plenário da
Assembleia da República, 21 de Outubro de 1998.»
CONTINUA
Fonte: Descentralização
Administrativa. O paradigma da divisão do território. O que fazer com o
Distrito, de Ermelinda Toscano, Lisboa, 2004.
Sem comentários:
Enviar um comentário