Quinta do Enforcado, 2013. Vale da Paiã (Odivelas). Fotografia de Ermelinda Toscano.
«O problema da regionalização assume particular
relevância quando se aborda a questão do ponto de vista do ordenamento do
território porque este, ao procurar convergir para opções de fácil implementação,
que conduzam a soluções exequíveis, pressupõe, numa perspectiva de
desenvolvimento integrado, a delimitação de áreas funcionais, de intervenção
operacional.
As regiões surgem, assim, como uma necessidade
estrutural, fundamental à satisfação dos objectivos pragmáticos de qualquer
política de gestão equilibrada dos recursos voltada para a obtenção de níveis
de eficiência e eficácia que favoreçam uma visão geral do processo
administrativo (seja ele de âmbito local, regional ou nacional) e para uma
convergência de interesses fundamentada numa utilização do espaço que respeite
as suas reais capacidades e potencialidades, atendendo aos desafios inerentes à
transformação evolutiva da sociedade contemporânea e à expressividade
geográfica dos modelos de organização espacial.
Longe de ser um espaço fechado, apesar de possuir
características únicas que a identificam pela distinção geográfica e diferença
histórica, cada região deve apresentar uma estrutura morfológica específica
cujo contexto físico, ecológico, económico, social e cultural carece de
abordagens teórico-metodológicas distintas que permitam, num quadro estratégico
global, analisar, em consciência, a amplitude dos projectos a implementar, após
assegurados os indispensáveis mecanismos de suporte político das acções
programadas.
A passagem do ordenamento conceptual para a fase do
planeamento de intervenção exige que o controle administrativo, apoiado num
modelo de gestão processual qualificado e num sistema informativo devidamente
coordenado, apresente um carácter tutelar que não cerceie a autonomia dos
diferentes agentes mas sim procure disciplinar, de forma coerente e
regulamentar, a sua actuação.
Os planos integrados de desenvolvimento, de conteúdo
programático definido em função da conservação do património (natural e
construído) e prevenção das disfunções locacionais (as quais ultrapassam, por
vezes, o perímetro territorial delimitado pela circunscrição
físico-administrativa concelhia), tornam evidente a urgência em definir formas
de intervenção directa que possam estabelecer regras de crescimento económico e
desenvolvimento social eficazes, porque a consecução das medidas preconizadas
depende da articulação entre políticas e instrumentos de acção, da definição de
parâmetros operacionais, que assegurem a concertação entre técnicos, autarcas,
população e instituições, e de uma efectiva descentralização administrativa do
aparelho burocrático do Estado.
A regionalização, no que concerne à sua viabilidade
prática depende, entre outros factores:
a) a coerência política das estratégias
adoptadas;
b) do modelo de estruturação, grau de
autonomia e capacidade financeira das autarquias regionais;
c) da delimitação territorial
escolhida, a qual não deve obedecer, exclusivamente, a critérios de ordem
física, económica, muito menos política, consoante os interesses que se mostrem
mais relevantes no momento, ou conforme a sensibilidade discricionária do
legislador, mas considerar, também, em simultâneo, os fundamentos históricos e
a génese cultural da população;
d) da solidez do edifício legislativo
básico, que se pretende capaz de eliminar discrepâncias normativas existentes e
susceptível de actualização formal, quando necessário;
e) da progressiva desburocratização dos
serviços centrais do Estado, através de um processo concertado e equilibrado de
medidas desconcentradas (por transferência/delegação de poderes para órgãos
periféricos ou de nível hierárquico inferior) e uma descentralização
concretizável, sobretudo, através da deslocação de funções para o âmbito
regional;
f) da consolidação de uma “identidade
regional” que potencie e vincule uma participação real dos cidadãos na gestão
dos interesses públicos e possibilite uma efectiva cooperação inter-institucional
e supramunicipal.
Não basta a
existência de um, ou vários, diplomas legais sobre a matéria para concretizar a
institucionalização das desejadas edilidades regionais. Nem tão pouco a letra
da lei é suficiente para o êxito de qualquer alteração nas divisões da
administração territorial do país. No quadro técnico-político de intervenção
actual e face ao sistema de financiamento das autarquias locais em vigor, é
indispensável reconhecer a contribuição de todos os graus de autonomia local
(municípios e freguesias) e não esquecer a importância da participação dos
cidadãos como instrumento de convergência real para atingir a complementaridade
de objectivos e a estabilidade e equidade normativas necessárias à sustentação
equilibrada do modelo a adoptar.
Por isso,
qualquer política de desenvolvimento regional deve incluir características
estruturais que a sustentem, como por exemplo, a melhoria da qualidade de vida
das populações e optimização de valores culturais, de forma a que se possa vir
a constituir como instrumento difusor do progresso e das transformações sociais
qualitativas a ele associadas, visando atenuar os desequilíbrios regionais
existentes potenciando a taxa de crescimento endógeno através, nomeadamente, da
valorização das estruturas produtivas internas e da sua dinamização sectorial.
As
dificuldades na implementação do processo de regionalização são inúmeras e advêm,
sobretudo, da profunda tradição centralista da nossa Administração Pública (que
receia a diminuição da sua influência governativa pela provável extinção de
alguns serviços tornados inúteis após a transferência de competências) e da
falta de consenso entre os parceiros políticos quanto à definição do perímetro
físico das regiões.
Fernando
Ruas (Presidente da Câmara Municipal de Viseu) aponta uma outra causa que pode
explicar o resultado negativo obtido no referendo da regionalização: “as
autarquias são, hoje, centros de poder e desenvolvimento que, pela sua
autenticidade e efectiva capacidade de intervenção social, resistirão a
qualquer turbação do seu papel político, designadamente no que concerne a
eventuais intenções ou movimentos de subalternização de atribuições e limitação
de instrumentos de acção. Pode ter estado aí uma das razões do insucesso da
solução governamental para a regionalização do País referendada em Novembro de
1998” (1).
Para o constitucionalista Jorge Miranda, o adiamento
sucessivo da criação das regiões administrativas, num percurso que designou por
“história triste”, deveu-se a: “deficiências internas dos partidos políticos
(que tinham grandes divisões no seu seio), por receios, a meu ver infundados,
de se pôr em causa a unidade nacional, por receios em matéria financeira, e,
ainda, por causa de particularismos locais, ou de bairrismos” (2).
Mas a principal razão apontada para o Não ter saído
vitorioso no referendo de 1998 foi “o mapa apresentado”. E adianta que considera
“um erro fundamental não se ter aproveitado as fronteiras distritais”.
Esclarece, todavia, que não pretende transformar os distritos em regiões
administrativas «porque, nesse caso, seria apenas uma simples mudança de nome,
e isso frustaria a intenção da Constituinte em criar áreas com uma dimensão
razoável, comparável às áreas das regiões administrativas francesas. A França
tem 22 Regiões Administrativas, Portugal poderia ter cerca de seis ou sete. Não
se trataria, portanto, de transformar os distritos em regiões administrativas,
mas sim de criar as regiões administrativas a partir de agrupamentos de
distritos.” (3)
Apesar da
Constituição reconhecer que a autonomia do Poder Local é um princípio
fundamental da nossa democracia, a descentralização, conceito jurídico que o
consubstancia, carece de uma verdadeira dimensão política que impeça a
crescente subordinação das autarquias à tutela do Estado através, nomeadamente,
do controle financeiro por parte da Administração Central, porque grande parte
das responsabilidades que têm vindo a ser transferidas são meras funções de
execução desprovidas dos adequados meios de suporte.
Aliás,
algumas dessas competências podem mesmo violar o princípio da subsidiaridade,
na medida em que o interesse das comunidades locais e as necessidades da
população em geral, factores determinantes do nível de governo mais apropriado
para a prática de determinada competência ou decisão, ficam seriamente
comprometidos devido ao facto de a maioria das autarquias locais não disporem
de estruturas orgânicas, pessoal habilitado e recursos financeiros para
exercerem as novas funções.
Existe um
conjunto de atribuições (na área do ambiente e do urbanismo, por exemplo), que
só com muita dificuldade os municípios isolados conseguirão exercer na íntegra,
pelo que a transferência de competências para o nível supramunicipal é uma
necessidade. Todavia, para que esta medida se torne um efectivo instrumento de
cooperação, de equilíbrio regional e de aumento da cidadania na vida colectiva,
é indispensável evitar que tecnocracia e burocracia continuem a dominar os
processos de decisão política.
Para
compreender a integralidade da mudança e os consequentes reflexos no tecido
social, é necessário equacionar os problemas quotidianos na dupla perspectiva
material (economia e tecnologia) e imaterial (ideologia e organização
política), pelo que o processo de descentralização funcional deve abranger, a
nível macro (transferência de competências para as autarquias) e micro
(delegação interna de responsabilidades – juridicamente conhecida por desconcentração),
as questões da salvaguarda do património cultural (histórico, arqueológico,
artístico e etnográfico), na medida em que são estes factores que estão na base
da preservação da nossa memória colectiva.
O princípio
constitucional da autonomia local impede, teoricamente, que sejam transferidas
para os municípios competências que estes possam não estar habilitados a
desenvolver. Contudo, a regra adoptada tem sido, sempre, a da universalidade,
ou seja, as tarefas são impostas, independentemente da capacidade técnica,
humana e financeira do receptor para satisfazer as novas incumbências.
As
competências de escolha casuística, por medida, em que as autarquias têm a
possibilidade de escolher as atribuições que pretendem, mediante acordo com o
Governo assente “numa tipologia contratual e identificação padronizada de
custos” (artigo 6.º da Lei n.º 159/99, de 14 de Setembro), parecem ser a
solução. Mas, primeiro, há que garantir a equidade e transparência dos
critérios a adoptar para se evitar que os contratos a celebrar acabem a reboque
de meras lógicas de conveniência política ou partidária, em detrimento da
prossecução do interesse das populações.
Os
fundamentos que suportam a descentralização (maior proximidade entre a
Administração e o cidadão; gestão mais eficaz dos bens públicos; utilização
mais racional dos recursos disponíveis), não se atingem pela quantidade de
poderes transferidos, mas sim pela qualidade das atribuições que se querem,
efectivamente, trespassar e, para que as autarquias assumam tarefas que
competiam à Administração Central e possam prestar serviços de qualidade ao
cidadão, é indispensável que lhes sejam concedidos, também, os meios técnicos
e financeiros suficientes.
Duas últimas
referências:
A) não existe
regionalização sem descentralização, assim como descentralizar sem regionalizar
só nos parece que faça sentido durante um período transitório de preparação
para a futura implementação de unidades territoriais com efectivos poderes
políticos e órgãos legitimados pelo voto directo das populações;
B) apenas
entidades supramunicipais verdadeiramente autónomas podem constituir-se como
verdadeiros mediadores entre o poder local e a administração central e
contribuir para o reforço da unidade nacional, desempenhando um papel determinante
na preparação e execução de planos regionais de ordenamento do território e
possibilitando, desse modo, a correcção das assimetrias económicas e sociais de
cada região.
(1) Intervenção
no I
Encontro Nacional Distritos 2000 – Pensar o Amanhã, Lisboa, 9 de
Novembro de 2000.
(2) Conferência
sobre «A
Revisão da Constituição e o Distrito, que futuro?», II Encontro Nacional
Distritos 2000 – Pensar o Amanhã, Beja, 15 de Outubro de 2003.
(3) Idem nota (2).»
Fonte: Descentralização
Administrativa. O paradigma da divisão do território. O que fazer com o
Distrito, de Ermelinda Toscano, Lisboa, 2004.
Sem comentários:
Enviar um comentário