quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Descentralizar ou regionalizar, eis a questão!?

Quinta do Enforcado, 2013. Vale da Paiã (Odivelas). Fotografia de Ermelinda Toscano.


«O problema da regionalização assume particular relevância quando se aborda a questão do ponto de vista do ordenamento do território porque este, ao procurar convergir para opções de fácil implementação, que conduzam a soluções exequíveis, pressupõe, numa perspectiva de desenvolvimento integrado, a delimitação de áreas funcionais, de intervenção operacional.

As regiões surgem, assim, como uma necessidade estrutural, fundamental à satisfação dos objectivos pragmáticos de qualquer política de gestão equilibrada dos recursos voltada para a obtenção de níveis de eficiência e eficácia que favoreçam uma visão geral do processo administrativo (seja ele de âmbito local, regional ou nacional) e para uma convergência de interesses fundamentada numa utilização do espaço que respeite as suas reais capacidades e potencialidades, atendendo aos desafios inerentes à transformação evolutiva da sociedade contemporânea e à expressividade geográfica dos modelos de organização espacial.

Longe de ser um espaço fechado, apesar de possuir características únicas que a identificam pela distinção geográfica e diferença histórica, cada região deve apresentar uma estrutura morfológica específica cujo contexto físico, ecológico, económico, social e cultural carece de abordagens teórico-metodológicas distintas que permitam, num quadro estratégico global, analisar, em consciência, a amplitude dos projectos a implementar, após assegurados os indispensáveis mecanismos de suporte político das acções programadas.

A passagem do ordenamento conceptual para a fase do planeamento de intervenção exige que o controle administrativo, apoiado num modelo de gestão processual qualificado e num sistema informativo devidamente coordenado, apresente um carácter tutelar que não cerceie a autonomia dos diferentes agentes mas sim procure disciplinar, de forma coerente e regulamentar, a sua actuação.

Os planos integrados de desenvolvimento, de conteúdo programático definido em função da conservação do património (natural e construído) e prevenção das disfunções locacionais (as quais ultrapassam, por vezes, o perímetro territorial delimitado pela circunscrição físico-administrativa concelhia), tornam evidente a urgência em definir formas de intervenção directa que possam estabelecer regras de crescimento económico e desenvolvimento social eficazes, porque a consecução das medidas preconizadas depende da articulação entre políticas e instrumentos de acção, da definição de parâmetros operacionais, que assegurem a concertação entre técnicos, autarcas, população e instituições, e de uma efectiva descentralização administrativa do aparelho burocrático do Estado.

A regionalização, no que concerne à sua viabilidade prática depende, entre outros factores:
a) a coerência política das estratégias adoptadas;
b) do modelo de estruturação, grau de autonomia e capacidade financeira das autarquias regionais;
c) da delimitação territorial escolhida, a qual não deve obedecer, exclusivamente, a critérios de ordem física, económica, muito menos política, consoante os interesses que se mostrem mais relevantes no momento, ou conforme a sensibilidade discricionária do legislador, mas considerar, também, em simultâneo, os fundamentos históricos e a génese cultural da população;
d) da solidez do edifício legislativo básico, que se pretende capaz de eliminar discrepâncias normativas existentes e susceptível de actualização formal, quando necessário;
e) da progressiva desburocratização dos serviços centrais do Estado, através de um processo concertado e equilibrado de medidas desconcentradas (por transferência/delegação de poderes para órgãos periféricos ou de nível hierárquico inferior) e uma descentralização concretizável, sobretudo, através da deslocação de funções para o âmbito regional;
f) da consolidação de uma “identidade regional” que potencie e vincule uma participação real dos cidadãos na gestão dos interesses públicos e possibilite uma efectiva cooperação inter-institucional e supramunicipal.

Não basta a existência de um, ou vários, diplomas legais sobre a matéria para concretizar a institucionalização das desejadas edilidades regionais. Nem tão pouco a letra da lei é suficiente para o êxito de qualquer alteração nas divisões da administração territorial do país. No quadro técnico-polí­tico de intervenção actual e face ao sistema de financiamento das autarquias locais em vigor, é indispensável reconhecer a contribuição de todos os graus de autonomia local (municípios e freguesias) e não esquecer a importância da participação dos cidadãos como instrumento de convergência real para atingir a complementaridade de objectivos e a estabilidade e equidade normativas necessárias à sustentação equilibrada do modelo a adoptar.

Por isso, qualquer política de desenvolvimento regional deve incluir características estruturais que a sustentem, como por exemplo, a melhoria da qualidade de vida das populações e optimização de valores culturais, de forma a que se possa vir a constituir como instrumento difusor do progresso e das transformações sociais qualitativas a ele associadas, visando atenuar os desequilíbrios regionais existentes potenciando a taxa de crescimento endógeno através, nomeadamente, da valorização das estruturas produtivas internas e da sua dinamização sectorial.

As dificuldades na implementação do processo de regionalização são inúmeras e advêm, sobretudo, da profunda tradição centralista da nossa Administração Pública (que receia a diminuição da sua influência governativa pela provável extinção de alguns serviços tornados inúteis após a transferência de competências) e da falta de consenso entre os parceiros políticos quanto à definição do perímetro físico das regiões.

Fernando Ruas (Presidente da Câmara Municipal de Viseu) aponta uma outra causa que pode explicar o resultado negativo obtido no referendo da regionalização: “as autarquias são, hoje, centros de poder e desenvolvimento que, pela sua autenticidade e efectiva capacidade de intervenção social, resistirão a qualquer turbação do seu papel político, designadamente no que concerne a eventuais intenções ou movimentos de subalternização de atribuições e limitação de instrumentos de acção. Pode ter estado aí uma das razões do insucesso da solução governamental para a regionalização do País referendada em Novembro de 1998” (1).

Para o constitucionalista Jorge Miranda, o adiamento sucessivo da criação das regiões administrativas, num percurso que designou por “história triste”, deveu-se a: “deficiências internas dos partidos políticos (que tinham grandes divisões no seu seio), por receios, a meu ver infundados, de se pôr em causa a unidade nacional, por receios em matéria financeira, e, ainda, por causa de particularismos locais, ou de bairrismos” (2).

Mas a principal razão apontada para o Não ter saído vitorioso no referendo de 1998 foi “o mapa apresentado”. E adianta que considera “um erro fundamental não se ter aproveitado as fronteiras distritais”. Esclarece, todavia, que não pretende transformar os distritos em regiões administrativas «porque, nesse caso, seria apenas uma simples mudança de nome, e isso frustaria a intenção da Constituinte em criar áreas com uma dimensão razoável, comparável às áreas das regiões administrativas francesas. A França tem 22 Regiões Administrativas, Portugal poderia ter cerca de seis ou sete. Não se trataria, portanto, de transformar os distritos em regiões administrativas, mas sim de criar as regiões administrativas a partir de agrupamentos de distritos.” (3)

Apesar da Constituição reconhecer que a autonomia do Poder Local é um princípio fundamental da nossa democracia, a descentralização, conceito jurídico que o consubstancia, carece de uma verdadeira dimensão política que impeça a crescente subordinação das autarquias à tutela do Estado através, nomeadamente, do controle financeiro por parte da Administração Central, porque grande parte das responsabilidades que têm vindo a ser transferidas são meras funções de execução desprovidas dos adequados meios de suporte.

Aliás, algumas dessas competências podem mesmo violar o princípio da subsidiaridade, na medida em que o interesse das comunidades locais e as necessidades da população em geral, factores determinantes do nível de governo mais apropriado para a prática de determinada competência ou decisão, ficam seriamente comprometidos devido ao facto de a maioria das autarquias locais não disporem de estruturas orgânicas, pessoal habilitado e recursos financeiros para exercerem as novas funções.

Existe um conjunto de atribuições (na área do ambiente e do urbanismo, por exemplo), que só com muita dificuldade os municípios isolados conseguirão exercer na íntegra, pelo que a transferência de competências para o nível supramunicipal é uma necessidade. Todavia, para que esta medida se torne um efectivo instrumento de cooperação, de equilíbrio regional e de aumento da cidadania na vida colectiva, é indispensável evitar que tecnocracia e burocracia continuem a dominar os processos de decisão política.

Para compreender a integralidade da mudança e os consequentes reflexos no tecido social, é necessário equacionar os problemas quotidianos na dupla perspectiva material (economia e tecnologia) e imaterial (ideologia e organização política), pelo que o processo de descentralização funcional deve abranger, a nível macro (transferência de competências para as autarquias) e micro (delegação interna de responsabilidades – juridicamente conhecida por desconcentração), as questões da salvaguarda do património cultural (histórico, arqueológico, artístico e etnográfico), na medida em que são estes factores que estão na base da preservação da nossa memória colectiva.

O princípio constitucional da autonomia local impede, teoricamente, que sejam transferidas para os municípios competências que estes possam não estar habilitados a desenvolver. Contudo, a regra adoptada tem sido, sempre, a da universalidade, ou seja, as tarefas são impostas, independentemente da capacidade técnica, humana e financeira do receptor para satisfazer as novas incumbências.

As competências de escolha casuística, por medida, em que as autarquias têm a possibilidade de escolher as atribuições que pretendem, mediante acordo com o Governo assente “numa tipologia contratual e identificação padronizada de custos” (artigo 6.º da Lei n.º 159/99, de 14 de Setembro), parecem ser a solução. Mas, primeiro, há que garantir a equidade e transparência dos critérios a adoptar para se evitar que os contratos a celebrar acabem a reboque de meras lógicas de conveniência política ou partidária, em detrimento da prossecução do interesse das populações.

Os fundamentos que suportam a descentralização (maior proximidade entre a Administração e o cidadão; gestão mais eficaz dos bens públicos; utilização mais racional dos recursos disponíveis), não se atingem pela quantidade de poderes transferidos, mas sim pela qualidade das atribuições que se querem, efectivamente, trespassar e, para que as autarquias assumam tarefas que competiam à Administração Central e possam prestar serviços de qualidade ao cidadão, é indispensável que lhes se­jam concedidos, também, os meios técnicos e financeiros suficientes.

Duas últimas referências:
A) não existe regionalização sem descentralização, assim como descentralizar sem regionalizar só nos parece que faça sentido durante um período transitório de preparação para a futura imple­mentação de unidades territoriais com efectivos poderes políticos e órgãos legitimados pelo voto directo das populações;
B) apenas entidades supramunicipais verdadeiramente autónomas podem constituir-se como verdadeiros mediadores entre o poder local e a administração central e contribuir para o reforço da unidade nacional, desempenhando um papel determinante na preparação e execução de planos regionais de ordenamento do território e possibilitando, desse modo, a correcção das assimetrias económicas e sociais de cada região.


(1)   Intervenção no I Encontro Nacional Distritos 2000 – Pensar o Amanhã, Lisboa, 9 de Novembro de 2000.
(2)   Conferência sobre «A Revisão da Constituição e o Distrito, que futuro?», II Encontro Nacional Distritos 2000 – Pensar o Amanhã, Beja, 15 de Outubro de 2003.
(3)     Idem nota (2).»




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